O DESPREVENIDO

A prosa já rolava solta naquele princípio de noite no "Bar do Baratão" - um pé sujo da periferia de Muriaé, simpática e tórrida cidade do interior mineiro.

Seu rotundo dono, que emprestara o apelido ao botequim, corria prá lá e prá cá, servindo cervejas e "pérolas" do bom humor. Sim, o Baratão era um desses cômicos rematados, capazes de provocar desde sonoras gargalhadas a sorrisos enternecidos. Seu humor vagava entre o fino e o mordaz, o jocoso e o sarcástico, o prosaico e o poético. Seu estilo era ímpar: uma indefectível bermuda azul e uma camisa colorida desabotoada, e, de acessório, um grosso cordão dourado, compondo um visual que pra muitos transpirava a bicheiro. Para outros, os cabelos desgrenhados e a barba de profeta conferiam-lhe um certo ar de filósofo. 
Alguns mais severos impingiam-lhe a pecha de bufão. Para além dos rótulos, muitos admiravam nele o descortino e a autenticidade. 
A clientela, ou plateia, era plural: senhores circunspectos; bêbados contumazes ou ocasionais; gente letrada, outros nem tanto; homens de posse, outros a possuir. Para lá convergiam e conviviam, em improvável harmonia, todo tipo de gente, do "populacho" à "elite" da cidade. 
Os assuntos eram os de sempre: negócios, mulher e futebol. À medida que a noite avançava e as garrafas iam sendo esvaziadas, a conversa amena ia dando lugar ao alarido e aos arroubos de jactância: fazendas eram compradas, musas conquistadas, times medianos alçados à condição de esquadrões imbatíveis. Aqui e ali, os devaneios dos bêbados urdiam proezas memoráveis. 
Súbito, se esgueirando por entre aquele povaréu, irrompeu boteco adentro um rapaz franzino, contando pouco mais de 20 anos, esbaforido, olhos arregalados, cara de assustado, deixando antever algo grave e premente. 
Sem meias conversas, logo abordou o dono da birosca:
- Baratão, Baratão, minha mulher acabou de ir pro hospital ganhar neném e eu tô desprevenido. Me empresta 30 reais. 
O botequineiro, assumindo seu lado ferino, coçou o queixo por alguns segundos e disparou inclemente:
- É caboclo, se você que sabe disso há 9 meses tá desprevenido, imagina eu que tô sabendo agora!?

* Dr. Antônio Francisco é médico em Muriaé, e colaborador desse blog



Comentários

  1. Ao começar a ler, pensei: isso é terxto do Renato Sigiliano. Surpresa ! Não é que é do dr. Antônio ? Pudera, assunto muito do ramo...

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