A ROÇA

 

         "Sãos estes os sítios?

         São estes, mas eu
         O mesmo não sou".
                         Antônio Gonzaga.

Por lá passo sempre, mas não reconheço minha roça. A casa nova - dizemos nova até hoje, porque veio depois da primeira ali construída - permanece de pé com a pintura, castigada pelo tempo, mais amarelecida do que a original. Já do estábulo quase só restam os coxos de cimento.
Os caminhos da minha infância estão tomados por mato e mal se pode divisá-los. Os pastos, antes atapetados de capim-gordura, estão cobertos por vegetação espessa e daninha - pudera, de há muito nenhum animal os pisoteia. Tudo reforça em mim a nostalgia de um tempo feliz, mas sem volta. O lugar é uma pálida lembrança, um espectro do sítio que persiste prenhe de vida nas minhas reminiscências.
Pouco vivenciávamos a noite; nos púnhamos a dormir pouco depois do sol se pôr e acordávamos um pouco antes de seu nascer.
Com a Estrela da manhã quase na linha do horizonte, saltávamos da cama. Eu, montado em meu pangaré, ia buscar o gado para a ordenha diária - essa era minha única tarefa por todo o dia. Ainda no curral, uma caneca de leite quente mal saído do úbere da vaca, acompanhado de um pedaço de broa de fubá, compunham a primeira refeição. As irmãs menores, Lucinha e Nininha, eram minhas convivas no frugal desjejum. As 3 mais velhas ficavam cuidando da casa. Já a mãe, Dalila, ajudava na lida da roça. Ela, embora pequena e de estrutura delgada, de pouco falar e muito fazer, por sua alma nobre, era o esteio da família - poucos supunham naquela frágil compleição tamanha força.
O pai, um homenzarrão alto, bonito, moreno de olhos azuis, quase sempre divertido e afetuoso, vez por outra se transfigurava num ente grosseiro, tirano, e lançava sobre ela acusações as mais variadas e infundadas. Muitos anos depois saberíamos que tudo aquilo não passava de manifestações de um quadro psiquiátrico:  Transtorno delirante. Mas ela sempre o amou incondicionalmente. Muitos anos mais tarde, após enterrar o companheiro de vida, rebateria incontinenti minha irmã Marly, que lhe questionara o porquê de tanto luto por alguém que tanto a maltratara:
- É, mas ele foi o homem da minha vida.
O dia era enorme, preguiçoso, mas sem tédio. Ao caipira, que ainda não conhecera a corrida vida da cidade, nunca ocorreria que o ócio era perda de tempo. Mas de fato não o é. É tempo sim de ganhar sabedoria, que não é apanágio dos letrados. Dalila, de há muito morta, é viva prova disso.
Por volta dos 5 anos, o mundo começou a se descortinar diante de nós. O acontecimento inaugural foi a ida com a família ao circo, em Campo Limpo, acanhado distrito de Leopoldina, quase sempre modorrento. Mas, por aqueles dias, o lugar fora colhido por uma intensa agitação.
O circo mambembe era, aos olhos de todos nós, um espetáculo grandioso.
Da trupe, nunca saltou da memória afetiva o palhaço Risadinha e nunca se apartou de meus olhos a imagem da bela partner do trapezista. Suas fotos por muito tempo enfeitaram o armarinho da sala - melhor móvel da casa; afinal eram os nossos maiores ídolos até então.
A partir daí nossa imaginação de garotos ganhou o mundo.
Quando escapávamos ao olhar ocupado, mas sempre vigilante da mãe, corríamos e subíamos o morro mais alto da fazenda, donde avistávamos o Pomba, caudaloso e comprido rio de nossa infância. Lá, zarpamos e atracamos muitas vezes, em viagens imaginárias mundo afora. A falta, o não possuir, nos apodera de uma imensurável riqueza: a de ser desejante.  Para além disso, costuma advir o fastio.
Mas chegou a hora de estudar, hora de ir embora. Mas não deixamos a roça: morávamos na cidade durante o período letivo e, nas férias, retornávamos pra lá, sem luz e sem TV.  O contato com o resto do mundo se dava pelas ondas médias e curtas do rádio de pilha.
E assim foi até nos mudarmos em definitivo pra cidade, já na adolescência. Depois faculdade, casamentos, trabalho e o tempo passou, parece que num átimo.
Mas o menino capiau continua ainda lá, correndo descalço, sem camisa, livre, cheio de vida, camponês, mas eu...
Bem, parco de desejos, deixo escapar vez por outra um sorriso cúmplice e enternecido em direção a ele.
                              Antônio Francisco

* Dr. Antônio Francisco é médico em Muriaé, e uma amizade da qual Mirian e eu muito nos orgulhamos

Comentários

  1. Fiquei emocionada lendo esse relato poético e tão tocante.
    Fui imaginando como aconteciam as coisas em cada trecho que lia .
    Lindo, lindo!
    Fiquei pensando, de que cidade ele via o Rio Pomba.
    Que quadro lindo!
    Me lembrei de Tomás Antônio Gonzaga:
    "Acaso são esses os sítios formosos, aonde passava os anos gostosos.?"
    Parabéns pelo belo texto, Antônio Francisco!
    Cibele Paradela
    Rio de Janeiro

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  2. Como o ser humano está precisando de delicadeza, simplicidade e poesia. Esse texto que disseca com a precisão de um bisturi poético a alma do menino que hoje homem, ainda mora na roça, galopando pelos pastos e correndo livre na natureza, me emocionou profundamente.
    Que beleza de narrativa, que presente! Obrigada Dr. ANTÔNIO FRANCISCO!

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  3. Belíssimo texto! Tocante e poético

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  4. Que texto maravilhoso, memórias que me remeteram à minha própria busca da menina que fui, também parte de um quadro emoldurado no passado.
    Se o autor tem outros escritos eu gostaria muito de conhecer.
    Parabéns ao Blog pela sensibilidade e por nos presentear nesta tarde chuvosa de sábado com este saboroso mergulho não somente na memória do autor, mas na de todos nós.

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