O RABO ESTÁ ABANANDO O CACHORRO
José foi assaltado.
Levaram o carro dele. Ao chegar em casa de táxi, ele imediatamente assumiu a
culpa pelo roubo: “eu dei bobeira, não deveria ter parado naquele semáforo”.
Maria foi estuprada, e quase
morreu. Ao prestar depoimento, ela deixou bem clara sua responsabilidade pelo
episódio: “eu vacilei, não deveria ter ido comprar pão sozinha”.
Um ladrão arrancou o telefone
celular das mãos de João enquanto ele atendia uma ligação. Ele – o João, e não
o ladrão – assumiu total culpa pelo crime: “eu não sei onde estava com a cabeça
quando fui atender uma ligação no meio da rua”.
Maria foi morta durante um
assalto. Ela gritou e acabou levando um tiro. Por ocasião de seu enterro, Maria
foi condenada por todos os presentes: “que estupidez dela ter gritado, todo
mundo sabe que durante um assalto o melhor é ficar em silêncio”.
Mário, um dedicado Policial
Militar, foi morto a tiros por traficantes do morro no qual morava. Seus
familiares, entrevistados por um jornalista, o recriminaram duramente: “ele
sempre foi cabeça-dura, nunca quis esconder a farda quando voltava para casa”.
No mesmo morro Paulo, um líder
comunitário, foi esfaqueado até a morte pelos mesmos traficantes. Seus amigos o
criticaram ferozmente: “que falta de juízo, procurar a Polícia para denunciar
que o crime estava dominando o morro”.
Marcos teve sua loja assaltada,
e quase levou um tiro. Seus empregados reclamaram dele: “que estupidez, deixar
aquele monte de mercadoria exposta na vitrina”. Marcos passou a deixar tudo
trancado em um cofre. Mas a loja foi assaltada de novo, e um de seus
funcionários, após quase levar um tiro por ter demorado a abrir o cofre,
agrediu-o violentamente: “seu miserável, fica trancando tudo, mais preocupado
com as mercadorias do que com a gente, e quase levamos um tiro por sua causa”.
Carlos estava jantando com sua
namorada em um movimentado restaurante quando uma quadrilha armada saqueou
todos os clientes. Seu futuro sogro não gostou: “este rapaz é um irresponsável,
ele sabe muito bem que não estamos em época de ficar bestando por aí, jantando
fora, e acabou passando por um assalto e traumatizando minha filha”.
Joel entrou em um subúrbio com
o caminhão da empresa para entregar pacotes de biscoito nos bares de lá. Após
ter tido os produtos e o caminhão roubados, e quase ter sido morto, foi
despedido por seu chefe: “que sujeito burro, ir com o caminhão lá naquele
bairro sem pedir licença para o líder do tráfico local”.
Patrícia viajou a negócios. Desembarcou
no aeroporto com seu “notebook” e tomou um táxi. Não conseguiu andar dois
quarteirões – foi assaltada em um semáforo. Na empresa, foi imediatamente
repreendida: “você não poderia ter desembarcado sem antes esconder o
“notebook”, deste jeito você pediu para ser assaltada”.
E é assim, de exemplo em
exemplo, todos já parte do nosso cotidiano, que vamos chegando a uma verdadeira
“rotina do absurdo”. Aqui no Brasil é tão normal um cidadão ter medo de
andar pelas ruas, é tão comum um policial ter que esconder sua profissão para
não morrer, é tão usual pessoas terem que pedir permissão a traficantes para
subir em morros e é tão rotineiro abrir-se mão da cidadania mais básica que já
não causa surpresa as vítimas estarem se transformando em culpadas pelos crimes.
Diante desta tenebrosa
realidade, patrocinada pela fraqueza e falta de firmeza das nossas
instituições, talvez já não nos cause surpresa ver um rabo abanando um
cachorro.
Pura verdade, o rabo está abanando o cachorro.
ResponderExcluirNão vou citar outros exemplos concretos, porque TENHO MEDO de represálias.
Certa vez, para evitar uma tremenda injustiça, apresentei-me como testemunha num acidente de trânsito. Virei réu.
Pouco tempo depois, presenciei um atropelamento, por volta das 23 horas, quando havia pouco movimento na rua. Não vou contar o resto, porque TENHO MEDO de represálias.